Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 16

A pandemia pode ter trazido muito sofrimento para muita gente. Soube que, pelo empobrecimento de seus tutores e mesmo pais/mães, muitos caninos foram abandonados. Mamãe fez doação para grupos que cuidam de caninos abandonados e teve dia que chorou, lendo as notícias, imaginando que eu poderia estar nessa situação, se não tivesse encontrado eles dois.
Papai é muito gozador, o que lhe traz problemas que poderia evitar. Um deles foi quando disse que, se eles não tivessem me encontrado, nem saberiam da minha existência. Eu não seria sua bruxa, dourada ou feia.
Mamãe subiu a serra, como se costuma dizer, gritando que ela saberia de mim em qualquer situação. Papai ainda tentou usar a lógica, mas perdeu feio a discussão. Quando o coração e o cérebro brigam, o cérebro perde. Fato incontestável. Basta ver as desculpas que as pessoas dão para seus comportamentos.
Como contava antes, a pandemia trouxe muito sofrimento ao mundo, mas, para mim, trouxe alegria. Mamãe, que é psicóloga, passou a atender por internet e eu pude ficar no consultório, com ela, durante alguns de seus atendimentos.
Durante um tempo, gostei muito de deitar no tapete e ouvir, mas confesso que não entendi porque as pessoas têm alguns problemas, que eu resolvo logo de cara. Acompanhei, também, muitas sessões de terapia de Mamãe, mesmo antes da pandemia, pois o terapeuta dela não mora em São Paulo.
Logo cansei de tudo isso. Sou muito prática. Como já contei, resolvo os problemas na hora, sem carregar nada para depois. E um único grito fez com que Mamãe corresse abrir a porta, para que eu saísse, no meio de uma sessão. Nunca mais ela me deixou voltar, mas não me incomodei. Fico com ela quando está lendo trabalhos dos alunos, quando está dando aula ou escrevendo.
Os dois leem muito, no quarto ou na sala. E conversam sobre suas leituras. Fiquei muito interessada num tal de fascismo, com medo de que algo acontecesse, mas Mamãe sempre me tranquiliza, explicando que temos de defender a democracia.
Mamãe diz que sou um cão de carinho.
Acho que ela fala cão porque tenho também comportamentos masculinos, como na hora de fazer xixi. Metade das vezes, em vez de agachar, levanto a pata. Pode ser por causa das mudanças hormonais pós-esterilização.
Mamãe diz para eu não me importar com isso. Cada pessoa tem seu jeito. Se quero fazer xixi deitada, em pé, de lado, é meu direito, diz ela. E temos de lutar pelos nossos direitos.
Não sei já falei isso. Aliás, ao escrever minhas memórias, tenho medo de ficar me repetindo, como vejo às vezes fazerem pessoas mais velhas.
Acho que por causa da idade desenvolvi o que se chama esquecimento.
Esqueço do que costumo fazer, embora tenha presente tudo aquilo que vivi, em especial na infância e adolescência.
Esqueci de algumas pessoas, que chegam e me chamam pelo nome, causando-me estranheza. Lembro-me com carinho de outras, que já partiram, como meu tio, irmão da Mamãe.
Foi triste quando ele partiu. Decidiu que não ia continuar o tratamento que fazia, pois sentia que sofria mais do tratamento do que da doença.
Foi um momento difícil para Mamãe, que teve de aceitar a decisão do irmãozinho dela, de aguardar tranquilo o fim da sua jornada neste mundo.
Como acontece com os seres vivos… estou de novo me repetindo, né?… o ciclo é inexorável, indo do nascer ao fenecer. Como as flores que Papai planta e das quais se orgulha, como das damas da noite.
E meu tio foi embora, assim como algumas amigas de Mamãe que sempre brincavam comigo. Partiu também aquele homem que me trouxe do sítio para São Paulo e que cuidou de mim com carinho.
Às vezes, estou deitada no tapete, descansando, e sinto como se alguém passasse a mão na minha cabeça. E ouço sussurros, como de vozes falando comigo de momentos de amor.
Olho e não vejo ninguém, mas acredito que tudo venha do meu coração, das lembranças boas que me aquecem.
Como sou um ser vivo, o meu caminho também vai se interromper um dia.
Espero que ainda demore e eu possa escrever outros livros, pelo menos aquele dos nomes e o das amizades. Mas gostaria mesmo de escrever um de filosofia, para ensinar a viver a vida da melhor forma.
A base do livro é: o que vale mesmo é a vida que vivo – e o amor que divido com quem está à minha volta.
Um dia, vou estar no céu dos cachorros.
Se o céu humano for perto, talvez nos encontremos por lá.
E vocês vão saber muito de mim, das minhas histórias, algumas das quais contei aqui, o que vai facilitar nossa convivência e brincadeiras.
Outras histórias, guardo comigo, ainda como sementes, que podem ou não frutificar.
Enquanto estamos por aqui, podemos nos encontrar.
Oxalá!


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Quando digo que eles passaram de tutores a Mamãe e Papai, isso não significa que a passagem tenha sido fácil e rápida.
Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria.
Regime. Detesto essa palavra, mas Papai diz que preciso, desde que a vet receitou.
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