Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 13

Devo confessar que às vezes não é fácil a vida numa casa de idosos, como na nossa. Mamãe e eu, 70. Papai, poucos anos mais.
Acho que com a idade ficamos cada vez mais sistemáticos e menos maleáveis. E temos horários mais rígidos, em especial porque todos tomamos medicamentos. Colesterol, pressão alta, hipotiroidismo, sopro… são expressões comuns aqui. Juntamente com aumento da dificuldade de ouvir (eu, por exemplo, só ouço o que quero, o que torna minha vida muito mais fácil) e de enxergar. Mamãe vai operar da catarata. Não sei o que é, mas imagino como uma grande queda d´água que impede ver do outro lado.
Hoje, eu diria que parece que todos nós temos um pouco de TOC, eu menos do que os outros dois, claro. O que não significa que eu não tenha horários bem estabelecidos, locais certos de dormir e de tomar banho de sol e tudo o mais.
O mais estressante é o horário meu jantar, que deve ser servido às 16h. Não tolero atrasos e me ponho a latir no meio da sala.
Papai me serve e reclama de que, à noite, vou sentir fome e ter outra sessão de latidos lá pelas 10h, assustando a vizinhança que está dormindo.
E cada um tem suas atividades cotidianas, que exigem tempo e esforço. Ninguém imagina o quanto é cansativo o meu trabalho diário de acompanhar Papai.
Ele não para quieto um minuto que seja. Mamãe diz que ele tem DNA de máquina. Está o tempo todo em ação, resolvendo problemas, escrevendo, traduzindo, lendo… Mas a principal tarefa dele é cuidar de mim e de Mamãe.
Sou muito bem cuidada, mas devo confessar que tenho de estar atenta, pois ele é muito distraído. Não é incomum ele colocar algo no fogo, lembrar que precisa trocar lâmpada do quarto e só voltar depois de deixar tudo arrumado no local, limpar os degraus da escada, guardá-la e… depois descobrir que até a panela queimou. Uma vez, a caneca chegou a derreter.
Ele se distrai também quando varre a calçada e arruma as plantas no canteiro que fez em volta da árvore. Na verdade, ele plantou orquídeas e fez canteiros de flores em volta de todas as árvores do quarteirão, dos dois lados da rua. Já aconteceu várias vezes de ele terminar o que estava fazendo, entrar em casa, fechar a porta – deixando-me do lado de fora.
Agora, depois de alguns acidentes, para dizer assim, está esperto e me chama, confirmando se estou dentro antes de trancar o portão. E eu também aprendi a ser mais atenta ao meu trabalho de saber onde ele está a cada minuto, observando as atividades dele.
O que aconteceu é que gosto de cheirar o canteiro e mais de uma vez fiquei para trás.
Imagine o meu susto, quando não o vi mais ali na calçada. Ao empurrar o portão, estava tudo trancado. Na primeira vez, fiquei em pânico, imaginando que ele havia me colocado para fora de casa, abandonando-me, pura e simplesmente, para viver nas ruas.
Nesse dia, fiquei tão triste que me sentei diante do portão, olhando para a porta da sala, atrás da qual estava toda minha vida. Um homem passou, rumo ao mercado, demorou mais de meia hora e, na volta, viu que eu estava no mesmo local. Tocou então a campainha e quem abriu a porta foi Mamãe.
Só posso descrever o ruído que ela fez como guincho. Tentei até imitar, várias vezes, sem sucesso. Ela correu para me colocar para dentro e saiu pela casa atrás de Papai. Quase fiquei com pena dele, pois ela estava realmente brava. Mas ele mereceu.
Onde já se viu, esquecer a cachorra ali, na rua? E se alguém a levasse?
Ele riu e piorou a braveza dela, dizendo que, se alguém me levasse, ele ia agradecer. E dar uma mesada para a pessoa me sustentar. Nessa hora, ela saiu mesmo do sério.
Outras vezes, corri até algum dos vizinhos, que, estranhando me ver sozinha na rua, tocou a campainha. Acho que Mamãe nem imagina todas as vezes que fiquei trancada na rua.
Não quero dizer nada, não… Ela está sempre atenta à minha presença, menos quando está no consultório, que é aqui, na parte de cima da casa, com entrada separada. Quando está aqui na casa, trabalha no computador, escrevendo, ou fica no sofá, lendo. A cada minuto, levanta o rosto é pergunta: Onde está o cachorro?
O cachorro sou eu e acho que Mamãe tem problema em entender isso de gênero gramatical: masculino ou feminino, embora em sexualidade outros sentidos apareçam.
Em geral, claro que estou bem por aqui, seja dormindo na sala ou no quarto, seja tomando sol. Onde mais estaria?
Quer dizer, estou por ali, menos quando saio com Papai ou quando ele me leva para tomar vocês sabem o quê, aquela coisa detestável.
E o que eu não queria dizer é que Mamãe também é muito distraída. Se está lendo ou escrevendo, parece que mergulha em outro plano. Pode ocorrer de tudo, que ela nem vai se abalar. Barulho, campainha, telefone, celular… Nada atrai a atenção dela.
Menos um suspiro meu, claro.
Se suspiro não funciona, apelo para o latido.
Infalível.
Não aceito não ser o centro das atenções.


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Estou há vários dias tentando lembrar o nome do livro, sem conseguir. Já aprendi que, quando isso acontece, nem adianta ficar me esforçando.
Nasci em uma pequena cidade do interior de Ávila, Zapardiel de la Cañada. Família de pequenos lavradores.
Li a mensagem da minha amiga e não entendi. Falo o bom e muito antigo português.
Um de meus sobrinhos é cantor lírico. Além da linda voz, é muito estudioso.
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