Regime. Detesto essa palavra, mas Papai diz que preciso, desde que a vet receitou.
Uma vez, senti forte dor nas costas e comecei a me arrastar. Mamãe quase teve uma síncope (ela é exagerada, em especial em tudo que se refere a mim) e saiu correndo, arrastando Papai.
O vet da vez me olhos com cara de dúvida, tirou uma radiografia das minhas costas e se sentou para conversar com o casal.
— Ela (disse, ele, referindo-se a mim) está com problemas porque está muito gorda. Dei-lhe uma injeção para dor, mas o problema vai voltar, devido ao peso.
Mamãe rosnou feio para o vet. Não me lembro bem, pois estava com sono, devido à injeção, mas sei que ela ficou realmente brava.
O problema é que ela olha para mim e me vê como sou: perfeita. Então, recebe muito mal os comentários que não sejam elogios. Alguém pode xingá-la, que ela não se abala. Mas, dizer qualquer coisinha sobre mim… o mundo cai.
Foi uma situação vexaminosa, pois ela tentou me levar no colo e não conseguiu nem me levantar da maca. Saiu, como se costuma dizer, pisando duro, deixando Papai para se desculpar, pagar e me carregar para o carro.
Nós andávamos muito, até Mamãe ter uma dor forte no quadril, que levou a uma cirurgia. Ela voltou a caminhar, mas não tanto quanto antes. Fazíamos pelo menos 4 ou 5 quilômetros todas as manhãs, antes de ela ir para o consultório.
Meus passeios continuaram, Papai nunca me deixou na mão, mas são mais curtos. À noite, íamos longe, mas agora ela não enxerga direito (tem catarata; vai operar) e tem medo de não perceber buracos e escadarias.
Aliás, uma reclamação. Nunca vi um lugar tão cheio de calçadas esburacadas e com degraus como neste bairro! Parece montanha-russa. Com quatro patas, não costumo me desequilibrar, mas entendo que quem tem só duas sofra.
Nem me abala mais ver idosos caindo.
Mas, voltando ao caso que queria contar, eu estava frequentemente esfregando o bumbum na calçada e Mamãe, como sempre, gritou: vet com ela! Ela, no caso, eu.
Dessa vez, foi uma senhora maravilhosa que me atendeu. Fez-me tanto carinho, falava com voz tão macia, que nem parecia uma consulta.
O único problema é que ela me mediu e me pesou.
Quando sentou para conversar com meus pais, pensei: lá vem bomba! E veio, das grandes.
Na hora, falou do peso e da importância de um re-gi-me. Não gosto nem da palavra.
Mas também me mandou fazer exames de laboratório. Lá foi Papai, me levar a um lugar onde ninguém me fez carinho, só ele. Me mediram, tiraram sangue, cortaram meu pelo em alguns lugares para colar fios, me enfiaram num tubo… Aguentei tudo, pois Papai me disse que estava tudo bem e eu sentia a mão dele em mim o tempo todo.
Aí, resultado. Sopro no coração. Não sei o que é isso. Ele não assobia e nunca me assoprou nenhum segredo. Os que descubro, é por esforço próprio.
Tenho de tomar remédio todos os dias e fazer o tal regime.
A hora do remédio é até que divertida. Papai prepara um pedaço de linguiça ou de carne, envolve o comprimido e joga para mim, esperando que eu pegue no ar. Claro que não pego.
O coitado não percebe que a cara dele quando prepara tudo pode ser traduzida em “vou enganar a Cacá”. Fica bravo quando deixo o petisco cair no chão, pego com cuidado e engulo, deixando o comprimido cair aos pés dele.
Eu ficaria horas nessa brincadeira, comendo petiscos, mas ele depois da quinta ou sexta vez, fica irritado e, daí, há duas possibilidades. Primeira, ele enfia o medicamento na minha garganta. Segunda, guarda para depois, o que significa que o jogo naquele dia terá várias partidas.
Para mim, de qualquer forma é ganho, pois ele tenta diferentes petiscos. Já falei da linguiça, mas tem também salsicha, queijo, pão com manteiga…
Ocorre também que, se estou de muito bom humor, finjo acreditar que um petisco é só um petisco, engulo e vou cuidar da vida
O regime não é ruim. Sei que como melhor do que muitas crianças neste País. Papai e Mamãe contribuem com várias associações que cuidam de crianças doentes, de idosos, de pessoas com algum tipo de deficiência ou necessidade especial… por isso sei dos problemas.
Então, como muito bem. Recebo aveia, frango desfiado e ração para cachorros obesos. Mas acredito que até mesmo quem goste de champanhe e caviar enjoe se tiver de comer isso todos os dias.
Daí o aumento do meu desespero para encontrar comida na rua.
E os cuidados redobrados de Papai nos passeios.
E as vezes em que quase sufoco para engolir algo que encontrei, enquanto ele tenta desesperadamente tirar de mim.
Viver é lutar. E se vingar.
Se ocorre algum desses problemas no passeio e ele fica bravo comigo, guardo o acontecido até chegar em casa. Aí, corro me esconder atrás de Mamãe. Não faço isso por ter medo dele ou das broncas, mas sim para que ele saiba o próprio lugar.
Não vou rosnar para ele, que é muito legal e pode se magoar. Mas, quando ela me vê chegar e me esconder… fica realmente brava… com ele. E eu, além de ganhar dela um bifinho, ainda deixo bem claro que estou desgostosa, sentando-me de costas para ele, como seu estivesse de castigo. Ele finge que não liga, sei que é fingimento.
Pena que não aguento muito tempo e logo vou atrás dele, pra saber o que está fazendo.
Sei que isso não é correto e que faço como esses adolescentes que agem como querem. Não gosto de limites e brigo com eles, mas gostaria de poder falar, para ajudar as famílias a colocar alguns limites muito necessários a seus rebentos.
Taí mais um livro para minha lista: como agir com adolescentes e botá-los na linha. (Que nem eu… kkkkkkk)