A rua é uma festa!
Uma grande e deliciosa e cheirosa festa.
Reconheço o mundo mais pelo odor do que por qualquer outra forma.
Em casa, estou cansada de ter sempre os mesmos e repetitivos cheiros.
Nem preciso erguer o focinho para saber o que está acontecendo: chegada da feira, banho perfumado de Mamãe, limpeza da cozinha, lavagem de roupa…
Tudo igual, sempre igual.
Isso de fazer todo dia tudo sempre igual cansa.
Torna a vida repetitiva, desanimadora, sem desafios.
Na hora que o portão é aberto e me vejo na rua, ah, na rua, tudo muda de figura.
E nada permanece igual por muito tempo.
Passou ali um cachorro conhecido, acompanhado de uma pessoa cujo cheiro não reconheci.
Preciso me informar.
Algum motorista almoçou sentado na pracinha e deixou na calçada, para os bichos, o resto da comida. Anotado.
Registrei: nem que seja à custa de arrastar Papai, devo passar por aqui na volta.
Xixi desconhecido no poste, misturado a muitos outros, bem conhecidos…
Um mundo de novidades, que mantém meu interesse na vida.
Papai é paciente e me deixar cheirar o q que quiser, menos em alguns lugares, em que me arrasta.
Isso acontece quando percebe que registrei a presença de comida.
Nesse caso, fica muito atento, a ponto de arrancar da minha garganta um pedaço delicioso que eu tinha conseguido abocanhar.
Diz que vou passar mal depois, o que não deixa de ser verdade.
Mas, o que seria a vida sem algum tipo de risco?
Atire a primeira pedra quem nunca fez alguma coisa, mesmo sabendo que não era boa, ou pouco ética ou ia deixar o cocô mole e Mamãe preocupada.
Outro lugar que não posso passar – me obriga a atravessar a rua – é aquele bar ou alguma casa de onde vem um delicioso cheirinho de mato queimado.
Gosto, mas ele diz que não posso.
Nesse caso, entendo que a decisão não seja dele, mas de Mamãe, que já disse que posso ser afetada por aquela fumacinha, pela delicadeza da minha constituição.
Não entendo bem isso, pois nasci no mato e senti até mesmo o cheiro de queimadas.
Mas aqui é tudo muito leve, não entendo por que iria me afetar.
Mais um mistério do mundo humano.
Quando era jovem, acordava por volta das 5h30 para passear.
Pulava na cama, entre Papai e Mamãe, ou dava um latido bem agudo no meio do quarto.
Lá iam os dois, meio adormecidos, para o meu primeiro passeio do dia.
Tinha direito a mais três, assim como hoje, pois fico muito entediada em casa.
Com a idade, fiquei mais calma, a ponto de que, hoje, levanto por volta da 7h30 para o primeiro passeio.
Reconheci que a rua não vai fugir e tudo de maravilhoso vai continuar ali, à minha espera.
Devo dizer que me orgulho dos meus dotes de treinadora.
Papai trabalhou em treinamento, ensinando pessoas a realizarem alguns tipos de trabalho da melhor forma.
Mas eu fui muito cuidadosa no treinamento dele, desde o início.
Com Mamãe foi mais difícil, pois ela é indisciplinada.
Segue a cabeça dela, em vez de prestar atenção no que quero fazer.
Assim, quando eu ainda saía sozinha com ela (fiz com que ela perdesse logo esse hábito, por causa da indisciplina), ela não entendia meus toques de que o passeio devia continuar.
Não, fazia o mesmo caminho, sempre.
E não me dava oportunidade de cheirar o mundo.
Puxava-me para longe, quando percebia que eu ia me aproximar de algo interessante.
E não entrava nas rodinhas de cachorreiros.
Um dia, fiquei tão estressada com a falta de interesse dela no próprio treinamento, que dei um puxão na guia – e ela se desequilibrou e caiu.
Sinal de que não estava prestando atenção na tarefa de passear comigo.
Fomos diretamente para casa – Mamãe chorando, por causa da perna machucada, e eu muito irritada pelo fim do passeio.
A partir daquele dia, quando ela se preparava para sair comigo, só as duas, eu me sentava na calçada e ali ficava, sem me mexer, por mais que ela puxasse.
Por fim, ela desistiu de tentar.
Sei que ela sofre com isso, lá se vão pelo menos nove anos, mas a culpa foi dela. Saio com Papai e com quem ele me diga que é para sair, a pessoa que fica comigo quando eles viajam.
Ele, já deu para perceber, é altamente treinável.
Uma vez, ele se distraiu e ficou desequilibrado quando puxei a coleira, para ele tomar tento no que estava fazendo.
Machucou o braço e teve de usar tipoia por dias.
Mas, ele acredita que quem cai do cavalo precisa logo montar, para que o medo não tenha tempo de se instalar.
E de tipoia e tudo me levava a passear.
Aprendeu a reconhecer todos os sinais.
Então, não preciso mais me esforçar.
Hoje, só desfruto dos passeios.
Sou uma treinadora nota 10.
Deveria me candidatar para treinar atletas de alto rendimento