Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 2

Na casa, Reinaldo deu-me comida, água e um lugar para dormir.

Fiquei ali encolhida, num canto, protegida do outro cachorro, que não gostou de mim.

Agora, mais velha e experiente, sei que foi uma mistura de ciúme com preconceito. Ciúme, porque ele era como se diz tratado a pão de ló. Ração de primeiríssima qualidade, veterinário urgente se levantasse a pata, todos os locais da casa reservados como pessoais e intransferíveis.

Aí chega uma caipira, vinda de um sítio longe, que nem sabia se comportar dentro de uma casa. E como poderia, se nunca tinha entrado em uma?

Logo que entendi que não iam me fazer mal e sim, ao contrário, cuidar de mim, fiz de tudo para me enturmar, com a família e com o cachorro. Pulei sobre ele, mordi as patas dele, puxei suas orelhas, avancei na sua comida… tudo para ele me ver.

Ao contrário, consegui mais inimizade. O lindo Golden não queria mesmo companhia canina, ao menos não a minha. E posso dizer que criou até mesmo aversão à minha presença, a ponto de ficar doente.

Já vi muito isso com crianças, e mesmo adultos, que não conseguem entender que não são donos de ninguém, que o afeto pode ser dividido. Mas, com cachorro, foi a primeira vez. Nada de surpreendente, pois foi a primeira vez que me aproximei de um cachorro.

Até então, conhecia apenas os do sítio, que ficavam presos em um canil e soltos no pasto à noite. Ninguém, gente ou animal chegava perto deles.

Depois, com o tempo, entendi o que é o ciúme. Melhor, o cuidado com o objeto amado.

Não entendo isso de complexo de édipo, mas acho que sofro desse mal. Vou explicar mais para a frente com calma, mas desde já adianto que tenho ciúme de Papai. Tanto que, para sair de casa, ele precisa me driblar. Quando percebo, dou tamanho show que a vizinha uma vez tocou a campainha e perguntou a Mamãe se tinha acontecido algo comigo. Mas, devagar com o andor, pra não atropelar a história.

Meu tutor – vou chamá-lo assim, pra seguir a moda – e a família fizeram de tudo para me manter. Levaram o Golden ao veterinário, compraram-lhe novos brinquedos, fizeram-lhe mais carinhos do que de costume (que já era muito), deixaram que brincasse na calçada, sob a responsabilidade da tutora, mas as coisas foram mudando.

Eu percebia o desassossego de todos, naquela casa, mas não atinava o motivo. Os mais jovens não se aproximavam de mim, para não dar espaço para mais ciúme. Fiquei por assim dizer largada, deixada de lado. Recebia comida e água e tinha um lugar para dormir. Mas, carinho? Não mais.

Hoje, com a experiência, sei que isso de não reconhecer sinais faz parte da vida. Há namoradas e namorados que não reconhecem quando a relação já acabou, que não há mais atenção por parte da outra pessoa, mas insistem em negar o que estão vendo. A declaração de amor para o outro ou outra nas redes sociais é apenas de amizade. Sei também quem quiser abrir os olhos da pessoa vai receber xingamentos.

Eu também, na minha inocência, mantive a esperança até o último momento.

Tudo chegou ao fim quando o casal decidiu sair de férias e precisava de alguém que cuidasse de mim. Nenhum dos jovens se comprometeu, mas o Golden, ah, o Golden logo teve quem se oferecesse pra cuidar dele.

Foi só quando vi aqueles dois no portão, olhando para mim, que compreendi que meus dias de comida farta tinham acabado. Eu ia ser levada. Engraçado, na hora percebi que não adiantava lutar, pois me veio uma certeza lá do fundo de que minha história acabava ali.

A rejeição ataca a alma.

A dor é paralisante.

Quase, sem conseguir respirar, de tanta dor, ainda tive de ouvir o comentário da mulher quando me viu:

— É essa a cachorra, meu bem? Tem certeza? Disseram que era engraçadinha e isso aí de gracinha não tem nada. Por sinal, é bem feia.

Isso aí era eu. E feia. Sem chance de ser feliz.

Entrei em pânico. Se fosse bonita como o Golden, talvez fosse tudo diferente. Que injustiça a vida tinha aprontado para mim!

Tentei me dar uma oportunidade, sendo simpática e acolhedora, mas não tive muito sucesso com a mulher. Ela se afastou de mim quando me aproximei para cheirar os pés dela.

Entraram rapidamente, cumprimentaram meu tutor, bateram um papo – só então soube que eram velhos amigos –… estavam ali claramente com uma finalidade.

Por fim, o homem pegou-me no colo e lá fui eu, mais uma vez, para o desconhecido. Minha segunda mudança de vida em meus poucos meses de idade.

Fizeram carinho em mim na viagem, mas eu, mais uma vez, não conseguia nem me mexer, pensando nas histórias horríveis que tinha ouvido nos meus tempos de sítio sobre cachorros abandonados nas ruas das cidades ou mortos nas estradas.

Dura, mal conseguia manter os olhos abertos, pois estava à beira do desmaio. Mas já tinha o costume de choramingar – e não conseguia parar um único momento, apesar das tentativas do casal de me calar.

Meu choramingo ininterrupto, que Mamãe chama de “contação de história” sem parar, é uma característica minha, assim como, nas palavras dela, a beleza interior e exterior. Mas, não quero me adiantar; vou devagar na passagem do “isso aí, feia” para a “maior beleza do mundo” sem cirurgia, sem preenchimentos e sem mudança da cor de pelo.

Melhor: sem banho de loja.

Ou seja, sendo eu, eu mesma.

Isso para mim deixa muito claro que Cinderela pode conquistar seu príncipe mesmo suja de cinzas. Ou que uma linda mulher, o filme, também exagera no exterior, deixando de lado o que mais importa na vida – aquilo que somos de coração


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A pandemia pode ter trazido muito sofrimento para muita gente. Soube que, pelo empobrecimento de seus tutores e mesmo pais/mães, muitos caninos foram abandonados.
As tais leis de atração deveriam ser abolidas. O que atrai uma pessoa para outra? O que atrai carinho? O que atrai castigo?
Quando digo que eles passaram de tutores a Mamãe e Papai, isso não significa que a passagem tenha sido fácil e rápida.
Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria.
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