Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 15

As tais leis de atração deveriam ser abolidas. O que atrai uma pessoa para outra? O que atrai carinho? O que atrai castigo?
Atrair coisas boas… atrair coisas más… não entendo isso.
Só entendo que às vezes atraio coisas más, como se fosse um imã, mesmo sem entender o que acontece.
Um exemplo é a montanha de colchas de crochê que a Mamãe herdou da mãe dela. Não conheci a vovó, mas sei que era uma pessoa muito legal. Ela partiu antes da minha chegada, o que acho injusto, pois perdi a oportunidade de conviver com ela.
Mães nunca deveriam partir. Sei que ela continua presente no coração da Mamãe, mas gostaria de tê-la aqui comigo, cuidando de mim nos momentos difíceis.
Mas, eu falava das leis da atração e de como há coisas que são como imãs de castigo.
Mastigar por acaso nem que seja um minúsculo cantinho, praticamente invisível, de uma das muitas colchas de crochê corresponde a uma sessão inteira de gritos, mãos na cabeça e minha expulsão para a garagem.
Esqueci de contar que ser colocada na garagem quando não estou a fim de latir para quem passa é o castigo que recebo quando “ela” considera que me comportei mal. Papai dá bronca e logo esquece.
Outro atrator de castigo é deitar no sofá ou na cama, se “ela” perceber. Só posso fazer nas poucas vezes em que fico sozinha em casa ou com ele, sempre atarefado, sem tempo para manter os olhos em mim.
Com ela dou menos sorte, pois pode se distrair com um livro ou filme, e, quando menos espero, perguntar:
— Cadê a Cacá?
Que pergunta! Onde eu poderia estar? Dormindo ao lado da poltrona dela, tomando sol no arremedo de quintal ou de castigo na garagem.
Sei que ela faz isso como forma de garantir que não estou na cama, mas, se ela estiver muito interessada no livro, é pra onde eu vou.
E se um dente por acaso enrosca na colcha que enfeita o sofá, onde me refestelei porque os dois tinham saído, é um Deus nos acuda! Um verdadeiro show, como se eu pudesse dominar o que faz meu dente. Enrosca. Será que você não entende? E quem coloca colcha de crochê no sofá, quando todo mundo sabe que colcha é pra cama?
Substituir o crochê por tecido não adiantou muito. Ela escolheu uma cor clarinha, bem clarinha.
Alguém pode me explicar como pode passar na cabeça de alguém colocar colcha clara na cama? Não sabe que suja facilmente? Não é ela que vive dizendo que preciso de b-a-n-h-o?
E não adianta me mostrar a marca do meu corpo na cama, como se eu não soubesse que tinha passado um tempo delicioso ali deitada.
A lógica materna às vezes me escapa. Mamãe quer tudo à moda dela.
Quando Papai sai e na volta me encontra na garagem, sabe que algo aconteceu.
Leva-me para dentro, conversando comigo, e não brigando.
Entro com ele sem medo, pois ele me protegem da braveza de vocês-sabem-quem que esqueceu que também foi filha – e nada santa, pelo que me consta.
Age como se tivesse nascido mãe, como se não precisasse seguir o caminho da natureza, de nascer filha.
Ela não se enxerga e ainda diz que a contraditória sou eu.
Um exemplo é quando vamos ao cabeleireiro, ou a qualquer outro lugar, com ela.
Não saio sozinha com ela, mas, quando estamos os três juntos e ela se afasta, quero ir com ela. Chego a brigar com a guia, que Papai segura, e só vou embora arrastada.
Quando ela dava aulas na faculdade, saímos um dia para passear, os três. Na volta, Papai atravessou a rua, me puxando, e ela entrou na faculdade.
Claro que dei um puxão, me soltando, e corri atrás dela. Atravessei a rua, quase sendo atropelada, e invadi o prédio, causando o maior auê.
Dois seguranças e a recepcionista correram atrás de mim. Eu, burra, em vez de gritar, segui o perfume dela. Conheci vários corredores, até que aquele bando de gente chegou atrás de mim. E Papai, que tinha se juntado ao grupo, me chamou, com aquela voz de você-está-muito-encrencada, que ele quase nunca usa comigo.
Fui para ele depressa, mas meio agachada, pedindo desculpas para ele se acalmar, mas sabendo o tempo todo que cumpri minha obrigação de cão de guarda. Fui pegá-la para guardar em casa e ela me fazer carinho.
O pior é que ela nem percebeu o show. Voltou para casa no maior sossego – e ainda riu com a história.
Só ela para rir naquela situação, em que eu humildemente pedia perdão para ele, que estava irritado, dizendo que eu tinha envergonhado a família, arriscado minha vida ao atravessar a rua… Eu ali, mendigando carinho, sem conseguir nem um reles sorriso, e ela rindo!
Se eu não fosse uma ótima – e bota ótima nisso – cachorra, pregava os dentes na canela dela, com rima e tudo, nem que ficasse um século de castigo.
Mas, não consigo evitar ser ótima! É algo a que fui condenada pelo destino.99


COMPARTILHAR
POSTS RELACIONADOS
A pandemia pode ter trazido muito sofrimento para muita gente. Soube que, pelo empobrecimento de seus tutores e mesmo pais/mães, muitos caninos foram abandonados.
Quando digo que eles passaram de tutores a Mamãe e Papai, isso não significa que a passagem tenha sido fácil e rápida.
Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria.
Regime. Detesto essa palavra, mas Papai diz que preciso, desde que a vet receitou.
r. padre chico | 789 | são paulo cep: 05008-010 | sp | brasil | Email | + 55 11 99612 9960
© Copyright 2021 - Depois dos 60 por Vera Vaccari. Todos os direitos reservados. O conteúdo deste blog não pode ser reproduzido, distribuído, transmitido, ou usado, exceto com a permissão prévia por escrito. Blog by Miss Lily
Este site usa cookies. Os cookies neste site são usados ​​para personalizar o conteúdo, fornecer recursos de mídia social e analisar o tráfego. Além disso, compartilhamos informações sobre o uso do site com nossos parceiros de mídia social, publicidade e análise da web, que podem combiná-las com outras informações que você forneceu a eles ou que eles coletaram do uso de seus serviços.
Concordo