Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 12

Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria. Como não precisa atravessar rua, não há perigo.
Até há pouco tempo, Papai corria e pulava comigo.
Os carros paravam, para aplaudir a gente e gritar coisas boas, como se estiv09éssemos no palco. Depois, ele começou a sentir algumas dores e parou com isso.
Gosto de correr e de brincar com Papai, que entende minhas brincadeiras.
Quando pego a bola e levo para ele, ele não hesita um só momento.
Pega a bola e joga para o alto. Salto o mais que posso, pego a bola e corro para meu canto, desfrutar de uma sessão inteira de tentativa de destruição.
Tenho várias bolas de tênis, que ganhei do vizinho, instrutor em uma academia.
Antes de Mamãe ter problema de quadril, a cada 15 dias, saíamos bem cedo para Santos, caminhávamos no calçadão da praia, Papai tomava um banho de mar, e voltávamos para casa, felizes.
Quer dizer, quase felizes, pois não gosto da viagem.
Adoro carro, não posso ver Papai sair, que corro atrás.
Mas só passeio curto, indo para um ou outro parque, como o Villa-Lobos.
Passeios mais longos me estressam e quero descer, choro de cortar o coração de quem me ouve, a ponto de pessoas em outros carros olharem, pra conferir se estão me maltratando.
Demorou pra cair a ficha e eles aprenderem a lidar com a minha cara de tristeza quando entram no carro e me deixam para trás.
Insistiram muitas vezes, além dos passeios quinzenais a Santos.
Uma vez, chegaram a me botar num barco na represa em Juquitiba.
Se Deus quisesse que eu vivesse na água, teria me criado como peixe, não como cachorro.
Uma verdade tão simples demorou a se estabelecer na cabeça desses dois.
Eu, inocente que era, entrei com eles no barco.
Com a velocidade, fiquei tão aterrorizada que nem conseguia me mexer, deitada aos pés de Papai.
Na volta, quase beijei o chão firme e eles tiveram muito trabalho pra me colocar de novo no carro.
Cheguei num momento em que a casa estava sendo reformada.
Então, era bagunça para todo lado, a gente morando bem ali, enquanto eletricistas e carpinteiros terminavam seus trabalhos.
Comportei-me lindamente nessa situação, apesar do incômodo.
Uma belezura.
Ia com eles fazer compras na loja de material de construção.
Mamãe me colocava num carrinho forrado com papelão e passávamos um tempão escolhendo sei lá o que ela queria comprar.
Puxa, a melhor cachorrinha do mundo!
Ouvia isso a todo momento, na loja, no restaurante, na casa de alguém…
Fui mesmo a melhor cachorrinha do mundo até que resolvi assumir que meus desejos também eram importantes, não só os deles.

Passei a insistir em marcar meu espaço.
Dizer sim para o outro muitas vezes significa dizer não para você.
É bom agradar, mas não se anular.
Aprender a dizer não é difícil, em especial quando se depende do outro para tudo, como no meu caso, que recebo teto, alimento e carinho dos dois.
O medo de perder o amor (e os cuidados) me levavam a ser boazinha, a fazer coisas mesmo quando não queria.
Sei que há até mesmo pessoas humanas, não só caninas, que agem dessa forma.
Então, fazia viagens, entrava em barcos, ia a restaurantes… fazia tudo que detestava, para que continuassem a me amar.
Até que, um dia, perguntei a mim mesma: Cacá, se eles amam você de verdade, será que não vão aceitar que você manifeste seus próprios desejos e vontades?

Afinal, o amor tem dois lados (no nosso caso, três. Será que somos um trisal? Preciso pesquisar).
Aos poucos, comecei a botar as manguinhas de fora.
Uivar quando me colocaram no carrinho da loja de material de construção.
Ganir ao ser amarrada ao pé da mesa do restaurante, mesmo que me dessem comida, pra me acalmar.
Latir na hora que quero, se escuto algum barulho, sem me importar com os vizinhos.
Será que não deveria, em vez de escrever livro, dar um curso sobre a arte de dizer não?
O caso é que deixei de ser boazinha e passei a ser como sou.
Era por causa do meu pelo caramelo e dos meus olhos dourados, que Mamãe costumava me chamar de Bruxa Dourada.
Quando insisto em algum comportamento que ela desaprova, não é difícil que vá para o oposto – e me chame de Bruxa Gorda (claro sinal de gordofobia) ou Bruxa Feia ou Bruxa Má.
Não vejo como ofensa e sim como elogio.
Sei que bruxas eram mulheres que, entre outras coisas, estudavam o poder de cura das ervas, numa época em que não existiam remédios prontos, médicos(as) e hospitais.
Sei também que há muitos remédios que foram descobertos a partir do que ficou da atividade dessas mulheres, que viveram há séculos e que queriam melhorar a vida das pessoas. Sei, ainda, que há pessoas humanas (e caninas) boas e más.
Foram muito perseguidas e até mesmo queimadas em fogueiras, porque achavam que o conhecimento delas não era do bem e sim do mal.
Como se o problema não fosse o uso que se faz do conhecimento, que é do bem, quando quer melhorar a vida de todos.
Mamãe tem até um livro, sobre isso de medicamentos desenvolvidos a partir de conhecimentos que vêm de muito longe no tempo, lá dos grupos indígenas da Amazônia, lugar onde ela morou.

Chama Sangue na floresta e vou pedir para ela ler em voz alta.
Então, bruxa fui, bruxa sou e bruxa serei, pois quero que todos vivam bem, inclusive eu.

Não quero viver mal para o outro viver bem.
É isso.

 


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A pandemia pode ter trazido muito sofrimento para muita gente. Soube que, pelo empobrecimento de seus tutores e mesmo pais/mães, muitos caninos foram abandonados.
As tais leis de atração deveriam ser abolidas. O que atrai uma pessoa para outra? O que atrai carinho? O que atrai castigo?
Quando digo que eles passaram de tutores a Mamãe e Papai, isso não significa que a passagem tenha sido fácil e rápida.
Regime. Detesto essa palavra, mas Papai diz que preciso, desde que a vet receitou.
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