Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 10

Os dias tristes, embora não muito próximos entre si, acontecem em três situações diferentes, duas sempre tendo Mamãe como instigadora. A terceira, a da obrigação de manter minha vacinação em dia ou me levar para uma consulta, é decidida por Papai, que aproveita a viagem, como diz ele. No caso de Mamãe, ela diz que alguém vai chegar, seja meu primo, seja uma das amigas dela, e preciso estar bem. Como se banho deixasse alguém bem. Ou ela enruga o nariz, vai atrás de Papai e comunica, como se fosse algo de importância transcendental:
— A sala (ou o quarto) está fedendo.
Nunca entendi bem essa história de que algo está fedendo, pois vou conferir minha cama (tenho uma no quarto e uma na sala) e sinto apenas aquele meu delicioso cheiro. Mas sei que tem um significado especial, pois logo algo acontece.
E acontece em pleno passeio, quando Papai entra em algum petshop e me deixa para tomar banho.
Conheço todos os petshops do bairro, pois é óbvio que, depois do primeiro banho, recuso-me a passar até mesmo pela calçada em frente. Obrigo Papai a atravessar a rua ou, mais garantido, faço com que ele mude de rota.
Banho é problema não só para mim, mas também para Mamãe. Ela fala de fedor e quem acaba se ferrando sou eu. Mas há muitas regras para o meu banho, que Papai tem de transmitir ao responsável do petshop.
Nada de perfume, nem de xampu perfumado, nem de enfeites, saias, brincos, bandanas, colares, estrelinhas, lacinhos, cocares, chapéus, tiaras ou turbantes à Carmem Miranda…
Se chego perfumada, Mamãe tem dor de cabeça, o que não lamento, pois, se tive de sofrer, ela também deveria receber seu quinhão. E quem não suporta perfume é ela, mas eu tenho de aguentar aquele que ela usa, francês da França. O quarto fica perfumado toda manhã. Um horror. Ela pode reclamar de mau cheiro, ao passo que eu tenho de aguentar. Injustiça!
Mamãe não gosta que me coloquem enfeites de nenhum tipo porque tem medo de que me machuque.
Entendo que, ao passar correndo, posso enroscar uma bandana ou um colar num vaso. Mas isso nunca aconteceu, pois o mais comum aqui é eu derrubar os vasos, mesmo que fiquem discretamente nos cantos, fora do meu caminho. Aliás, a casa é organizada em função da minha presença, só agora percebi.
Uma vez, cheguei com um monte de estrelinhas coladas na testa. Pensei que Mamãe ia ter uma síncope. Imaginem, o medo dela era que eu engolisse as tais estrelinhas, de papel colorido. Vai-se saber.
Papai ri das preocupações dela, pois diz que eu sou delicada como uma anta. Imagino que aqui estaria outra razão para ela não querer que eu ponha nada de delicado, que ponha em destaque minha falta de delicadeza.
Preconceito, embora eu prefira não usar nada que me atrapalhe. Mamãe, por exemplo, só usa roupa e brinco. Nada de anel ou colar.
Acho que meu jeitão faz com que me chamem de cachorro, assim, no masculino. Para mim, isso de gênero não faz a mínima diferença, pois somos todos caninos, com os mesmos direitos. Mas sei que no mundo humano há um bocado de preconceito. Mamãe também se refere a mim, metade das vezes, como cachorro. “Onde está o cachorro?”, pergunta ela, várias vezes ao dia.


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A pandemia pode ter trazido muito sofrimento para muita gente. Soube que, pelo empobrecimento de seus tutores e mesmo pais/mães, muitos caninos foram abandonados.
As tais leis de atração deveriam ser abolidas. O que atrai uma pessoa para outra? O que atrai carinho? O que atrai castigo?
Quando digo que eles passaram de tutores a Mamãe e Papai, isso não significa que a passagem tenha sido fácil e rápida.
Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria.
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