Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 6

Dias depois da minha vinda para esta casa, quando saí pela primeira vez para passear de peitoral e guia, percebi que este era o melhor dos mundos, aquele que eu queria para mim e para todos os cachorros.

Fiz amizade com uma cachorra mais velha, chamada Diana.

Diana não interagia nem com pessoas e nem com cães. Seguia a mãe dela e pronto. Não precisava de guia, pois era como uma sombra que caminhava atrás da mulher.

Ela era boa comigo, até me dava alguma atenção.

Ficamos assim por muito tempo, nos vendo todos os dias, pois ela vivia aqui quase ao lado.

Fiquei muito triste quando ela partiu, por saber que nunca mais a veria. Mas, não tinha o que fazer para impedir.

Foi minha primeira amiga, mas não a única.

Um dia, vou até escrever um livro. Já tenho até o título: Como fazer amigos e influenciar pessoas. Minha praia, só espero que ninguém use o título antes de mim. [Mamãe disse que leu um livro com esse título quando era adolescente, mas sei que só fez porque devia estar brava comigo.]

Se há um bairro cheio de cachorreiros, é a Pompéia. Tem mais cães por metro quadrado do que é possível calcular. Eu não consigo.

Dependendo do horário, as ruas parecem canis, com tantas pessoas passeando com seus cães. Quer dizer, eles acham assim, mas a verdade é que são muitos cachorros levando pessoas para passear. Sei, porque obrigo Papai a sair pelo menos três vezes ao dia, de preferência quatro.

Os cachorreiros se conhecem. Fazem rodinhas, trocam ideias, acariciam os cachorros uns dos outros… É um mundo à parte, no grande mundo humano.

O pior é que, quando saem sem seus cachorros, às vezes nem se reconhecem. Ou seja, o importante é o cão. Isso deveria estar gravado bem grande em algum lugar, para ninguém esquecer.

Imagino nos shows e jogos, aí no estádio do Palmeiras, aqui perto, um luminoso, no início, fim e intervalos, projetar essa grande verdade. O importante é o cão.

Mas nem todos pensam assim, devo confessar.

Há os detestáveis gateiros, mas, ainda bem que não existe o costume de levar gatos pra passear.

Há também os nem carne nem peixe, que gostam de cães e gatos. (Mamãe já teve gatos e gosta muito deles. Nem imagino algum bichano aqui, no meu espaço. Ela ia pagar um preço muito alto, lá isso ia.)

E há também, por incrível que pareça… Vou contar.

Uma vez, vínhamos Papai, Mamãe e eu pela rua, num domingo de sol. De repente, comecei a sentir um cheiro muito estranho. Olhei e, no meio do quarteirão de cima, caminhava em nossa direção um casal, acompanhado de um bicho. Comecei a rosnar, a rosnar… Como estavam longe, Mamãe não entendeu o que acontecia.

Descendo a rua, em uma coleira, vinha um animal que eu só tinha visto no sítio em que nasci. Um porco. Não um porco comestível, mas sim um de passeio. Quem já viu isso?

Claro que tivemos de parar, para que as famílias trocassem ideias. O bicho me olhou feio e eu olhei feio para ele. Puxei a guia, para que o papo fosse bem curto. Não esqueci as maldades dos porcos, no sítio.

Não era esse, claro!, mas, como não posso rosnar para aqueles, que já devem ter virado comida há muito tempo, rosno para esse de agora. Faço como quem briga com alguém e desconta a raiva nos filhos da pessoa, que não têm nada a ver com o caso.

Meu papo com gatos é outro.

Detesto gatos, criaturas malignas, que me maltrataram muito nos tempos do sítio.

Aqui bem perto há uma pessoa, que é muito minha amiga. Diana morava com ela.

Ela tem uma mania de gato. Tem vários. Por isso, ao sair para passear, puxo a guia, para passar pela rua e não pela calçada. Vai que seja atacada por um bicho daqueles.

Mamãe já me disse que tenho de lidar com o medo, deixá-lo para trás. Ela imagina minha história e me dá conselhos, alguns bons, mas não muito fáceis de seguir. Esse, por exemplo. Deixar o medo não é só querer e fazer.

Ela me diz que, quando eu estava no sítio, era pequena e indefesa. Agora, sou grande e forte e nunca saio de casa sozinha. Ou seja, tenho também Papai ao meu lado para me defender.

Mas ela não conhece a história completa, de como fui arranhada, escorraçada – além de ter minha comida roubada.

De qualquer forma, me esforço – e às vezes até passo em frente da casa da Diana, mesmo que me encolha um pouco. O problema é que nem sempre depende só de mim.

Ano passado, Mamãe foi tomar vacina de gripe e Papai e eu ficamos caminhando ali perto do Posto de Saúde. De repente, um gato enorme, parecendo um guepardo (comentário de Papai, ao contar a história para Mamãe), saiu de baixo de um carro e pulou em mim. Dei um grito tão estridente que fez com que homens saíssem dos bares ali em volta, tentando entender o que estava acontecendo. Comentaram com Papai que esse gato costumava fazer isso e assustava não só cachorros, mas também pessoas.

Quando Mamãe apareceu e soube da história, ficou uma fera. Até eu fiquei com medo dela, que queria voltar, chamar a polícia e acusar o tutor do gato de violência contra animal ou algo assim. Demorou hora até que Papai conseguiu acalmá-la. Mas, quando passa naquele quarteirão, quem olha em volta é ela. Embora seja contra a violência, é capaz de esquecer disso se o tal bichano aparecer.

Acho que um dos problemas do amor que ela sente por mim é me ver como se fosse uma cachorrinha minúscula e indefesa, mesmo dizendo que sou grande e forte. Esse tipo de contradição me deixa muito cansada. É como quando não sei se sou a Bruxa Dourada ou a Má. Quer dizer, sei, sim. Mas não quero que ela saiba que eu sei. Deu pra entender?

De qualquer forma, conto com esse costume dela de me achar pequena e indefesa. Quando quero algo ou levo bronca de Papai, corro para perto dela. Ele não ousa dizer nada, pois, se ela perceber que ele está bravo comigo, o pau vai comer pro lado dele, como se costuma dizer.

 


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Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria.
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