Memórias de uma cachorra (quase) bem comportada
Capítulo 5

Ele brinca muito comigo, mas também me investiga da ponta do focinho à ponta do rabo, cada vez que ela acha que algo pode estar errado. No fundo, é irritante, mas também gostoso. Faço disso uma brincadeira, em vez de brigar. Aprendi que não vale a pena brigar por tudo, só por aquilo que realmente me importa. Comida, água, carinho…

Nem sempre é fácil essa história dos nomes.

Será que é a isso que se referem quando falam em dar nome aos bois?

No caso dos dois que me acolheram, no início eram donos ou tutores.

Não são meus donos, pois, se houver uma relação de alguém ser dono de alguém, esse é o meu caso. Eles me pertencem, pois vivem no meu coração, da mesma forma que vivo no coração deles. São responsáveis por mim, assim como sou responsável por eles. E não são meus tutores, pois nossa relação vai muito além do cuidado e da obrigação. No amor, não há obrigação; há cuidado com quem a gente ama.

Aos poucos, passaram a ser Papai e Mamãe para mim.

Não foi algo repentino, mas também não foi tão vagaroso.

Só posso dizer que o amor entre nós cresceu, como massa de pão. É aquela maçaroca, que não parece com nada. Daí, é coberta pro fermento agir. Por fim, levada ao forno, sai o pão quentinho.

Mas há também muito trabalho de misturar os ingredientes e amassar, amassar, amassar…

Só posso garantir que fiz e continuo fazendo minha parte para ter pão todos os dias.

E eles também mudaram o jeito de falar de mim.

Como já contei, cheguei com o nome de Castanha, recebido lá no sítio em que vivia. Sou grata a alguém que se deu ao trabalho de me nomear.

Mas Mamãe não gostava do meu nome. Achava feio, assim como me achou feia no início.

Por isso, decidiu mudar meu nome. No fundo, ela tinha ciúme de alguém ter colocado nome em mim, por isso insistiu em mudar.

Papai achou que seria muito trabalhoso me chamar de outro jeito, mas ela insistiu, dizendo que ia colocar um nome parecido com o meu.

Foi assim que passei de Castanha a Cacá.

Devo dizer com sinceridade que ela acertou na escolha, pois Cacá me parece um nome que combina mais comigo, que sou alegre, estabanada e quase bem comportada.

Cacá ela começou a me chamar e Cacá fiquei e como Cacá escrevo estas memórias.

Cacazinha, Caquinha, Linda… são nomes que ela usa também.

Rio sozinha quando lembro que no primeiro encontro ela me chamou de “isso aí” e “feia”, pois hoje ela se desdobra em elogios. Isso mostra, para quem duvidava, que a beleza está nos olhos de quem vê. Conforme seu coração foi se enchendo de mim, ela foi me achando cada vez mais bonita. Sei que hoje me considera o máximo da beleza, acima de qualquer outra, mas é a beleza vista com o coração e não com os olhos, que podem seguir padrões de beleza, que nem nas revistas e também nos concursos caninos.

Todos – humanos e caninos – têm algo de belo, que deve ser valorizado e elogiado. Crianças e caninos desenvolvem autoestima, fundamental para uma vida feliz, não com base em elogios falsos, mas sim no reconhecimento de qualidades. Procura e acharás, costuma dizer Mamãe, citando a Bíblia. E ela encontrou em mim muitas qualidades.

E padrões também podem resultar em preconceitos.

Mamãe e eu, aos 70 anos as duas, mostramos a idade. Não temos, por assim dizer, o frescor da juventude.

Isso não é um problema, mas sim algo da natureza dos seres vivos, que seguem um ciclo, cada estação sucedendo a outra: nascimento, florescimento, fim.

Ela tem os cabelos brancos e rugas no rosto (além do corpo matronal). Eu, por meu lado, tenho o focinho branco e a pelagem menos brilhante. E, como Mamãe, estou acima do peso.

O preconceito de idade é chamado de etarismo. Pessoas mais velhas são muitas vezes desconsideradas, como se atrapalhassem, em vez de contribuir para o mundo, com sua experiência de vida.

Engana-se quem acredita que, por ser considerada idosa, não tenho a luz do Sol e os raios da Lua dentro de mim, que dão brilho à minha existência e que permitem que eu leve luz à existência de outros seres.

Há quem negue minha luz, comentando que pareço uma cachorra muito velha, quando não querem brincar comigo, preferindo os filhotes, em geral mais alegres e brincalhões. E dando mais espaço para os cachorros “de raça”, considerados mais bonitos.

Isso é ridículo, pois eu sou de muita raça. Sou, como todos os cachorros, descendente daqueles lobos que começaram a se aproximar dos humanos há milhares de anos. Foram então se desenvolvendo várias raças, muitas das quais estão presentes em mim. E tenho muita raça porque tenho muita força de viver.

Sou tão forte e decidida que às vezes Mamãe me chama de bruxa. Umas, Bruxa Dourada, por causa da minha pelagem caramelo. Outras, Bruxa Feia ou Bruxa Encrenqueira ou o que for, dependendo do que fiz que a desagradou.

Entendo que bruxas são pessoas que tanto podem ser boas, cuidando das pessoas, quanto más, quando fazem maldades. Mamãe fala da história das mulheres, que vive estudando, pois parece que em algum momento mulheres boas, que queriam o bem-estar de todos, tratavam doenças e acabaram muitas vezes na fogueira, acusadas de bruxaria.

Parece que contribuíram para o surgimento da medicina, séculos depois. Entendo que muitos medicamentos atuais foram fabricados a partir de conhecimentos de povos antigos. Mamãe tem até um livro, sobre isso de medicamentos desenvolvidos a partir de conhecimentos que vêm de muito longe no tempo, lá dos grupos indígenas da Amazônia, lugar onde ela morou. Chama Sangue na floresta e vou pedir para ela ler em voz alta para mim.

Mas, nada disso envolve cães, pois vejo filmes na televisão em que bruxas têm morcegos e gatos, daí meu desinteresse pelo tema.

Acho que a educação não vai para a frente porque ninguém, nem família e nem escola, pensa em trabalhar a partir do interesse do filhote. Querem ensinar isso, isso e isso.

Uma vez, Mamãe decidiu que eu deveria entrar num programa de treinamento. Imaginem, eu numa escola. Num domingo, fomos assistir como era uma sessão.

Depois, ela tentou repetir. Claro que eu entendi muito bem cada ordem, mas achava um despropósito ter de fazer algo quando não queria. Então, deitava e ficava quieta. Mamãe não demorou a cansar da brincadeira e a me deixar em paz.

O que mais me interessa é a minha vida, como tenho e quero, com minha comida, meus lugares de dormir, meus passeios… Se está tudo garantido, estou bem.

Mamãe acho que até hoje ainda não descobriu que, em vez de me treinar, foi treinada a não exigir de mim nada que eu não esteja a fim de fazer.

Tenho muitas queixas de Mamãe, que demora um pouco para entender o que espero dela. Não é muito treinável, embora aqui possa ter parecido o contrário.

Um dia, volto ao tema.

Ele brinca muito comigo, mas também me investiga da ponta do focinho à ponta do rabo, cada vez que ela acha que algo pode estar errado. No fundo, é irritante, mas também gostoso.


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A pandemia pode ter trazido muito sofrimento para muita gente. Soube que, pelo empobrecimento de seus tutores e mesmo pais/mães, muitos caninos foram abandonados.
As tais leis de atração deveriam ser abolidas. O que atrai uma pessoa para outra? O que atrai carinho? O que atrai castigo?
Quando digo que eles passaram de tutores a Mamãe e Papai, isso não significa que a passagem tenha sido fácil e rápida.
Brincar e correr fazem parte da minha vida. Adoro quando Papai me solta, na volta dos passeios, e me deixa dois quarteirões sem guia. Venho para casa que nem um tiro, ganindo de alegria.
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