Um furor.
Mamãe e Papai já tinham tido uma cachorra que ficou prenhe muito novinha, por descuido das pessoas que cuidavam dela para eles, que estavam fora.
Até ali, achavam que eu tinha 4 meses e iam esperar completar 6 meses para me operar.
De repente, souberam que eu tinha 7 meses.
Ela já era Mamãe nessa época e praticamente obrigou Papai a sair correndo para o veterinário, procurar alternativas.
Não estava gostando da ideia de que eu fosse operada, por me achar muito nova.
Ela dizia que seria um crime fazer algo naquela barriguinha lisa e cor de rosa, que ela gostava de acariciar.
Os três – mãe, pai e vet — conversaram a respeito.
Nem tiveram muitas dificuldades para decidir, por causa da cachorra que tiveram.
Anticoncepcionais não eram recomendados pelo veterinário.
A experiência de encontrar casa para filhotes vira-latas tinha sido muito dura.
Aí, passada essa fase, vinham as demais: ter notícia de cachorrinhos maltratados pelos novos tutores; um morto ao chegar na nova casa, atropelado… Mamãe tinha chorado muito naquele tempo e não queria reviver a tragédia.
Não sair comigo na época do cio era inviável, pois os cios ficariam mais próximos – e eu sairia muito pouco – e nós três fazíamos longas caminhadas, nos divertindo.
Há um agravante: a maioria das pessoas não quer cachorras, porque ficam prenhas.
Isso deixa Mamãe muito brava, a ponto de rosnar, quando fica muito brava.
Nisso parecemos muito, embora o rosnado dela seja mais feroz do que o meu.
Por fim, o triunvirato concordou que o jeito de resolver minha situação seria a cirurgia.
Mamãe faz doações para ONGS que cuidam de cães abandonados e defende com garras a “posse responsável”.
Papai, além das doações, coleta latinhas, que lava, amassa, armazena e leva toda semana para uma senhora que as entrega para uma ONG que cuida de animais abandonados.
A mulher já disse que há meses em que Papai junta 100 reais em latinhas.
Um bocado delas, não?
No caso da cirurgia, lá fomos nós. Não, lá fomos Papai e eu. Depois de me deixar uma noite sem água e sem comida, de madrugada, Papai me colocou no carro e me levou para a clínica veterinária.
Não deixou que ela entrasse no carro, para não me deixar mais estressada do que o necessário, explicou ele.
Mamãe já estava chorando, embora eu não entendesse por quê.
Lá, na clínica que eu conhecia, entregou-me para uma pessoa, fez-me um carinho na cabeça e saiu.
Ainda gritei:
Papai!
Mas a enfermeira puxou minha guia, levou-me para os fundos e me trancou em uma jaula.
Um novo abandono, pensei eu.
Eles não me amam, me enganaram e me deixaram na rua da amargura.
Cheguei a uivar pensando nos cachorros utilizados em testes de laboratório. Passam a vida sofrendo, até serem por fim sacrificados.
Mamãe sempre comenta sobre isso quando assina pedidos de proibição de testes com animais vivos.
Acho que se fosse com cobra ela não se importaria tanto.
Tem uma raiva especial delas, pois um cachorro que ela amava morreu picado por uma jararaca.
Difícil entender como nossas crenças são abaladas por questões pessoais não resolvidas…
Passei horas ali, chorando minha grande mágoa, sem conseguir parar para pensar.
A cada minuto, a vida parecia pior.
Sei que fiz como as pessoas pessimistas, que não analisam o que acontece e não buscam alternativas. Partem do princípio que as coisas ruins vão piorar e ponto final.
Se eu estivesse mais calma, teria visto que os cachorros ali estavam sendo cuidados – e não maltratados.
Mas, comecei a chorar minha grande mágoa logo de cara – e fui em frente.
E chorei e lastimei e contei todas as minhas dores durante o dia todo, até que, no fim da tarde, o veterinário veio e me disse palavras de consolo, antes de me fazer carinho.
Receber carinho no momento do desespero é como ter um copo de água no deserto ou chegar a uma ilha depois de passar horas nadando no mar bravio depois de um naufrágio.
Aí, aprendi que, quando vejo alguém triste, posso chegar perto e encostar o focinho na mão, transmitindo minha solidariedade.
Gosto dessa palavra. Solidariedade.
O veterinário disse para a enfermeira que não precisava coleira e guia, pois eu era muito boazinha.
Caminhei ao lado dele até uma sala e ele me ergueu e me fez deitar em uma mesa bem fria.
Antes de sair, deu-me uma injeção.
Não doeu, mas aprontei uma gritaria como se tivesse arrancado minhas quatro patas.
Quando voltou, vestindo um grande avental e máscara, mal pude reconhecer o cheiro dele, pois estava com muito sono.
Acordei na jaula, sem poder me mexer muito, ainda sem entender o que tinha acontecido.
Passei mais um dia sem comer, com dor, isolada, mas com poucos momentos de consolo.
Recomecei, ainda deitada, meu lamento ininterrupto.
Mamãe diz que quando eu conto minha triste história, até as pedras se comovem, tão pesado é o meu tom.
Ali, meus companheiros de infortúnio foram solidários e começaram a acompanhar meu lamento, como podiam, uns uivando, outros latindo ou ganindo. A responsável não sabia o que fazer para nos acalmar e a vizinhança deve ter tentado chamar a polícia, pois algo grave com certeza acontecia naquela clínica.
Não me arrependo de ter dado início àquele barulhão.
Conseguir colocar minhas dores para fora é algo muito positivo na minha vida, pois impede que eu guarde amargura.
Acho que se aquele cachorro da primeira casa em que vivi, o Golden, tivesse aprendido a expressar a dor, a tristeza, a insatisfação, o ciúme, não ficaria doente.
É um caso de saúde mental, diz Mamãe. Disso, então, eu tenho muita.
Passou o problema, passou a tristeza.
Fico como que nova em folha, pronta pro que der e vier.
Não carrego nada para o dia seguinte.
Fico linda, leve e solta. Melhor, continuo linda e volto a ser leve e solta.
Depois daqueles dois dias na jaula, como se fosse um animal feroz, achando que o mundo tinha acabado e eles me esquecido, ouvi a voz dela, Mamãe, perguntando por mim.
Pensei que ia desmaiar, de tanta alegria.
Eu não tinha sido abandonada!
A enfermeira veio e me ajudou a sair da jaula.
Fui meio me arrastando meio correndo em direção à porta aberta.
Além dela, estavam os dois, Papai e o vet, agachados, me esperando chegar.
E eu cheguei, contando toda a história do meu sofrimento, do medo do abandono, da alegria do reencontro.
Contei tudo para eles, mas não preocupei com ela.
Vi a porta aberta e saí para o estacionamento. Se ela quisesse, que fosse atrás.
Ela foi, mas percebi que estava preocupada.
Na viagem de volta para casa, deitei no banco de trás, ao lado de Mamãe, que me fazia carinhos o tempo todo, que eu fingia não perceber.
Mas abanava o rabo a cada vez que Papai falava comigo ou se virava para ver se eu estava bem.
Ao chegar em casa, ela estava praticamente em lágrimas, mas eu aguentei firme, pelo menos até a hora de dormir.
Sofri, mas ela também sofreu. Bateu, levou, diz o ditado.
Não que eu seja vingativa, isso jamais. Apenas quis dar uma lição a quem merecia.
À noite, recebi uma comida gostosa, carinho, deitei na sala, no meu cantinho.
E minha vida se encheu de novo da luz das estrelas, mesmo que a janela estivesse fechada.