Logo chegamos na casa, onde moro até hoje. Puseram água e comida para mim, além de organizar uma cama, num canto, para que eu deitasse. Tentavam me acalmar, mas só se me dessem remédio, pois eu não parava de tremer. Calmante, chá de camomila, maracujina, sei lá. Precisava de algo, mas não me deram nada.
Acho que passei dois dias encolhida num canto, tremendo, apesar dos carinhos que os dois faziam em mim, até me sentir minimamente viva.
Hoje, sei que, qualquer coisa que fosse acontecer, aconteceria, estando eu saltitante ou encolhida no chão. Quero acreditar que sou mais corajosa e que enfrento as coisas da vida com alguma coragem.
Mas, era ainda muito nova para saber disso tudo.
Ainda era a cachorrinha do sítio, a Castanha mal-amada, e não sabia protestar e me defender.
Passados três ou quatro dias, com as três refeições diárias correspondentes, eu já estava mais acessível.
Comecei saindo da despensa, onde estava minha cama, e me aproximando deles na sala. Aos poucos, fui me deitando por ali, fazendo-me vista.
Já estava na hora de sair de casa, o que exigia equipamento adequado.
Fui no colo daquela que ainda não era Mamãe, mas logo passaria a ser, comprar guia e peitoral de passeio.
Há uma loja muito grande aqui perto de casa. Adoro ir lá até hoje, pois me dão algum tipo de salgadinho na chegada. E encontro outros cachorros nos corredores, que posso parar para cumprimentar, além de funcionários, para quem sorrio e que sorriem de volta.
Naquele dia, lá atrás, Papai escolheu algo cor de rosa, que achou combinar comigo.
Depois, achei muito engraçado. Mamãe é fervorosa feminista e isso de rosa para fêmeas humanas ou caninas e azul machos das duas espécies para ela é ultrajante. Entendi depois que, por reconhecer que delicadeza não é algo que combina comigo, Papai tenha insistido nas tais cores socialmente consideradas femininas, pois ficava incomodado quando perguntavam se eu era macho ou fêmea. Achava que isso me ofendia, logo a mim, que defendo o direito de que cada qual seja do jeito que achar melhor.
Mamãe brigou muito com ele por causa disso, até ele aceitar que peitoral e guia para mim tinham de ser reforçados, de couro, qualquer que fosse a cor disponível.
Da mesma forma aconteceu com a cama. Papai escolhia as camas mais lindas, mas aprendeu que, no meu caso, melhor e mais barato ter um edredão fácil de lavar e colocado sobre um forro de borracha, pra isolar o frio.
Diverti-me muito roendo minhas camas bonitas, coloridas, com desenhos de corações, de patinhas, de florzinhas… Mamãe ria a cada vez que ele chegava em casa com algo desse tipo, sabendo que pouco ia durar.
Como se diz, a esperança é a última que morre. Demorei a entender que a esperança dele era ter uma cachorrinha pequena e delicada, daquelas que fazem xixi que cabe em um dedal e uma tripinha minúscula de cocô. Coitado, teve de aprender que eu não era assim.
Aliás, a gente fala tanto em amor do filho ou filha pelo pai ou mãe e pouco fala dos anseios dos pais, que às vezes querem recortar os filhos para caber num molde que têm lá na cabeça deles. O resultado é que fica todo mundo infeliz, um porque não aceita a realidade; outro, por não se sentir aceito.
Como diz Mamãe, brigar com a realidade é como dar soco na parede. Quebra a mão.
Pior é quando alguém tenta se adequar, seja a pai, a mãe, a marido, a mulher… o resultado é desastroso.
Mas, peitorais cor de rosa ou de couro (como hoje), meus passeios começaram logo, pois as vacinas estavam em ordem. A amiga de Mamãe, mulher do Reinaldo, tinha providenciado tudo direitinho.
Mamãe pediu a ela que descobrisse minha idade, pra completar o que fosse necessário. Bem, o jeito era aguardar.
Demorou até que eu percebesse que havia um preconceito contra mim. Sou o que se costuma chamar de vira-latas, embora nunca tenha nem visto uma lata de lixo para virar. Como já contei, não sou feminina, como as cachorrinhas pequenas e com peitoral cor de rosa e lacinhos na cabeça. E, também como já contei, tenho DNA de trator, nas palavras de Mamãe, característica que acredito ter herdado de um trisavô pitbull, por causa da mandíbula larga.
Uma vez, passeando num domingo à tarde, um grupo de crianças nos seguiu, gritando:
— Olha o pitbull!
Levei o maior susto, pois entendi que achavam que eu era agressiva, tal a fama dos pitbulls. Mas conheci alguns no sítio onde nasci, que eram ensinados a agir como guardas e a atacar pessoas e animais que tivessem a infelicidade de entrar no caminho deles, querendo ou sem querer.
Muita violência é assim, aprendida. Aprendida por quem não recebeu carinho, só maus tratos; por quem vive na solidão, sem ter com quem aprender regras de convivência; por quem tem de atacar, para não ser atacado…
Mamãe fala muito da violência contra a mulher. Afirma que os homens aprendem que podem ser violentos sem consequências com as mulheres, que consideram inferiores em direitos. Segundo ela, isso pode ser mudado, na educação de meninos e meninas. Tomara!
Na primeira oportunidade, Mamãe perguntou ao veterinário se eu tinha muito de pitbull. Aliás, se pudesse, Mamãe teria um veterinário residente. Não posso tossir, espirrar, tropeçar, deixar um teco de comida, não fazer cocô quando saio, fazer muito cocô… enfim, ter qualquer comportamento normal, sem que ela ache que estou com doença grave. Minha sorte é que Papai ri de tudo isso e só me leva a consulta quando ele mesmo fica preocupado.
Naquele dia, o tema era quais vacinas faltavam e a pergunta que meus novos tutores fizeram:
— Ela tem parte de pitbull? Tem uma mordida forte. Se agarra um travesseiro, não adianta querer tirar dela.
Eu, hein? Brincar de puxar travesseiro é uma coisa. Quem nunca fez? Mas, morder alguém, gente ou bicho, nem sonhar, embora goste de dar às vezes um pequeno show de latidos e rosnados. Como fazem muitas pessoas.
Adorei o filme Ferdinando, que assisti com Mamãe, que chorava a cada momento. Um touro miúra, criado para a arena, que era um grande boa-praça. Mamãe comentou que, quando menina, adorava os quadrinhos do Ferdinando. Ela não consegue nem ouvir na televisão notícia de rodeio, pois diz que os animais são maltratados. E gostaria de levar para casa todo cachorro abandonado que vê.
O veterinário compreendeu a preocupação da família e respondeu:
— É uma cachorrinha com muitas raças misturadas. Não há nada nela que demonstre violência especial, embora todo cachorro deva ter algum tipo de treinamento. Dependendo da situação, todos podem avançar e até mesmo morder.
Ele já me deu o mote.
Não precisava – e não queria – ser treinada.
Mas, ser treinadora era outra história.
Me aguardem.