Mamãe e eu temos a mesma idade!
Surpreendente, né?, mãe e filha completarem o mesmo número de anos, mas com experiências diferentes e o mesmo amor.
Parece estranho afirmar isso, mas posso explicar e assim todo mundo vai entender. Mamãe tem 70 anos humanos e eu, dez anos caninos, correspondendo cada um, segundo dizem, a sete anos humanos.
Então, vivam os 70!
Não costumamos aqui em casa fazer grandes comemorações de festas. Mamãe e Papai acreditam que o melhor é comemorar a vida em qualquer dia que a gente quiser, mas não em datas marcadas.
Será que ela diz isso porque perdeu o dia do meu nascimento? Vai que sim, embora não tenha importância.
O importante é que não vejo nada de diferente na minha vida, a cada dia que passa. Anos não são como um muro, que vai sendo construído e medido em centímetros ou até mesmo avaliado a olho nu.
Não! Os dias vão se juntando bem devagar, devagarinho, como diz uma música. E isso é muito bom. Nem imagino como seria adormecer um dia como uma linda cachorrinha e acordar uma cadela bem velha, que nem naquela história do Rip van Winkle, o homem que deitou para dormir na floresta e acordou 20 anos mais tarde. Duas décadas de sono seriam mais do que minha vida terrestre.
Os meus dias, meses e anos se juntam um a um desde que nasci, formando no início uma pilha desordenada e, depois, algo mais organizado, desde que dei por mim em um sítio bem longe de São Paulo, no Rio de Janeiro.
Não me lembro como foi que dei por mim, que percebi que eu era eu, mas penso que todo mundo passa por essa experiência.
Desde esse dia de me reconhecer, venho acumulando experiências, por isso decidi escrever minhas memórias, para partilhar meu aprendizado e ajudar a quem me lê a evitar os mesmos problemas que enfrentei.
Ouvi que a pessoa deve escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Como pessoa canina (houve um ministro que declarou uma vez que cachorro também é gente), já acompanhei Papai quando planta árvores – e ele adora fazer isso. Então, obrigação número um devidamente cumprida. A dois é impossível, pois não posso ter filhos (fui esterilizada aos sete meses de idade, como vou contar). De minha plena responsabilidade sobrou a número três: escrever um livro.
Tenho muitas ideias de livros possíveis, mais optei por começar com a minha história.
A lembrança mais distante é de um lugar. Não sei se tinha ainda mãe e irmãos, mas ao menos não estavam por perto. Eu era sozinha e me virava como podia.
Era apenas uma filhotinha esfomeada quando um homem gentil apareceu, para medir as terras do sítio em que eu nasci e vivia. Reinaldo, o nome dele, o agrimensor. Passou alguns dias nesse trabalho e aos poucos fui me aproximando dele, em busca de comida. Ele me alimentou, mas, além disso, me deu aconchego. “Nem só de pão vive o homem” e nem o cachorro. A vida é feita de alimento e de carinho. Ou de pão e amor, se você for mais poético.
Ele cuidou bem de mim, alimentando-me e me fazendo carinhos. Cuidou tão bem de mim que nos afeiçoamos um ao outro, mesmo que, de minha parte, o amor tenha sido temperado com um pouco de interesse. Lembro que não está escrito que a quantidade de pão e de carinho tem de ser igual. Da parte dele houve algo mais puro, afeição verdadeira.
E tanta afeição que, quando seu trabalho terminou, procurou o responsável pelo sítio e perguntou se poderia me levar com ele.
Eu não era de ninguém – disseram para ele. Tinha nascido ali e ali vivia, entre porcos e galinhas, sem que ninguém me desse um segundo pensamento, embora levasse alguns pontapés quando atrapalhava a passagem.
Não sei se ele me explicou que ia me levar com ele para outro lugar. Se sim, não entendi o que queria dizer e logo me vi no chão do carro, numa longa viagem. Estava com tanto medo, apesar da gentileza dele, que parou várias vezes, para me dar água e me deixar fazer xixi, que não conseguia nem uma coisa e nem outra. Só fazia tremer.
Ninguém ligava para mim; era escorraçada de todo lado lá no sítio. De repente, recebi cuidados e fui conquistada. Daí, levada. Para onde, não sabia. Pela experiência no sítio, nada de bom ia acontecer comigo.
O sítio, comendo um pouco da lavagem dos porcos e levando alguns pontapés, era o único lugar que eu conhecia. Restos de comida temperados com pontapés – era isso que eu conhecia. Mas confesso que insistia em ficar ali, tentando mostrar que linda e boa cachorra eu era.
Acho que fazia como essas pessoas que, por uma migalha de carinho, fazem de tudo para manter um relacionamento tóxico. No meu caso, fazia de tudo por alguma sobra da cozinha, achando que aquela vida era aceitável.
Acho que é por isso tão difícil que as pessoas façam mudanças de verdade em suas vidas. De um lado, acostumam-se com a situação; de outro, têm medo de que qualquer mudança possível seja para pior. Melhor o mal conhecido do que o desconhecido. Se esse ditado não existe, deveria existir, com o meu nome nele.
Lembro que no sítio recebi até um nome. Soube disso quando Reinaldo perguntou e lhe responderam: Castanha, por causa da cor do pelo. Ou tinha nome ou inventaram na hora, para não passar vergonha.
Depois, meu nome foi mudado, mas vou tocar nisso mais adiante. E um dia vou escrever a respeito dos nomes, um grande livro. Não agora, para não desviar das minhas memórias.
O caso é que fui trazida para São Paulo e levada para uma grande casa.
Nada a ver ainda com Mamãe, mas posso dizer que fui bem recebida pela dona da casa, se não fosse um problema. Um problema bem grande, devo dizer. Do tamanho de um Golden retriever muito mimado. Naquele tempo, eu não entendia nada de mimo e tudo me pareceu muito estranho.
E muito difícil de lidar, para uma cachorrinha inexperiente.